Luciene Felix Lamy é colunista do Consueloblog e na sua coluna deste mês fez uma interpretação incrível e completa desta tela de Van Eyck.
Pedi e ela autorizou que publicassemos aqui no blog.
Não mudei nenhuma palavra do que foi publicado no post e nos comentários.
Olhe o quadro e acompanhe a análise. Este quadro nunca mais será o mesmo pra você.
Eu diria que essa obra de Van Eyck é precursora da revista “Caras”, pois testemunha o casamento do próspero banqueiro italiano, Giovanni de Arrigo Arnolfini, e sua eleita, Giovanna Cenami, insistindo em quão são abençoadamente afortunados. Será?
Sim, as feições de Arnolfini, que fez fortuna recolhendo impostos sobre importados, lembra o rosto de… Vladimir Putin. Ele se veste com sobriedade e, para um homem de sua posição, esse seu “manteau” era o que havia de mais elegante e distinto na época.
Já sua eleita, a jovem e bela Giovanna, segundo, Robert Cumming, “vinha de uma rica família italiana, e sem dúvida sua união foi cuidadosamente arranjada com um ‘bom partido’” (esse negócio de “bom partido” pode ser uma cilada, mas falaremos de dinheiro – o seu e o dele – quando estivermos nas Casas 2 e 8, OK?). Nada de economia com tecido: ela usa um amplo vestido verde, cor símbolo da fertilidade.
Destaque para o franzido fazendo certo volume no abdome, que era considerado de bom tom, pois prenunciava uma futura gravidez. Aliás, o detalhe das peles nas mangas, no barrado e na gola também é indicativo de riqueza. O primoroso bordado do véu e no vestido dela também atesta o quão minucioso é Van Eyck.
Tudo, absolutamente tudo nessa pintura é dotado de significado (se tiverem interesse, discorreremos sobre esse simbolismo aqui mesmo, na área de “Comentários” do ConsueloBlog): a forma em que as mãos se unem, o lustre e sua única vela acesa, o cãozinho, os tamancos dele e dela (suas posições e cores), o espelho, seu reflexo e a via crucis nele, o rosário de cristal ao lado do espelho, as laranjas (fruta de rico, na época, pois eram importadas), a Santa Margarida (padroeira do parto) ou, pela mini vassourinha ao lado dela, Santa Marta (padroeira das donas de casa) entalhada na cabeceira da cama, a assinatura em gótico por extenso do nome completo do autor (reparem que o “J” de Johannes está estilizado em forma de cornucópia (cornos da cabra Amalthéa, que simboliza abundância), seguida das palavras em latim “fuit hic”, que significa “esteve aqui”, a mão direita do noivo aberta em direção ao ventre da noiva, como que abençoando seu futuro rebento, o “luxuoso e caríssimo tapete da Anatólia” junto à cama do casal e o que mais pudermos encontrar.
Sobre os detalhes da obra “O casal Arnolfini”, vamos observar:
As duas mãos do casal estão delicadamente unidas, como se fossem uma só, e esse gesto é reiterado no candelabro de uma única vela. Observem que ele está pendurado imediatamente acima delas. O “cobre” desse candelabro é um espetáculo à parte!
Agora, não é intrigante que um casal tão rico acenda uma única vela em seu candelabro justamente no dia de seu casamento? Mas há uma razão para isso. Dizem que era costume acender uma única vela na noite de Lua de Mel para que favorecesse a fertilidade.
Noutra interpretação, essa única vela também pode ser entendida como sendo “o olho de Deus, que tudo vê”. Não duvido, pois nessa época a consciência das pessoas estava realmente certa disso, que Deus vê tudo. Aliás, esse era um “ideal” católico medieval: fazer tudo como se na presença de Deus. Um pintor que insiste nessa temática é o contemporâneo de Van Eyck, o espanhol Hieronymus Bosch (1450-1516), que analisaremos oportunamente.
A presença do animalzinho doméstico dá o toque de leveza à austeridade do momento e, sendo um cão, remete à fidelidade. Nota-se que não é um vira-latas, mas um cãozinho de raça, talvez “importado”. É provável que tenha sido também por isso que esteja inserido no registro, para denotar as posses dos donos da casa (ainda bem que esse costume se rarefez e, cada vez mais, adota-se cãezinhos abandonados). A delicadeza, paciência e precisão de Van Eyck em pintar os pelinhos desse ‘lulu’ são visíveis.
Os tamancos dela, em vermelho, são delicados e confortáveis. Estão junto ao leito, indicando que é onde e como a mulher “deve” estar: disponível e dentro de casa. Calma: estamos em 1421… Para se ter uma ideia, ainda faltam uns 200 anos para surgir um Vermeer, que também não é “moderninho”.
Já os tamancos do Sr. Arnolfini, mais rústicos, estão destacados como que na entrada do quarto, indicando que logo sairá para tratar de seus negócios, fora de casa. Esse é mais um simbolismo dos valores da época: homem lá na rua, trabalhando. Mulheres em casa, zelando do lar. E, postos de lado, significava que estavam envolvidos num ritual, nesse caso, de casamento.
Em volta de todo espelho há o reflexo do pintor e de mais duas pessoas, certificando o testemunho dessa união cristã. Há também a minúscula pintura das “Estações da Cruz”, em volta do espelho, simbolizando que o casal é religioso. E, talvez, lembrando que o casamento passa por fases e requer sacrifícios.
O rosário de cristal pendurado na parede foi presente do noivo para Giovanna: simboliza a pureza e a devoção que ela deve ter para com ele. Parece que era típico da época que o noivo presenteasse a amada com algo valoroso sim, mas de cunho religioso.
As laranjas (na época, raras e caríssimas no norte da Europa) também eram chamadas de pomo-de-adão, indicando a luxúria mundana que só poderia ser santificada através da sacralidade do matrimônio.
As janelas se abrem para dentro e possui detalhes de um delicado e colorido vitral.
A cama, com uma colcha vermelha, cor da paixão, era um objeto mobiliário importantíssimo nas casas dos antigos nobres: era lá que eram gerados os futuros herdeiros. Lá se nascia e também lá se morria, no leito. Reparem que ela tem um dossel, e que esse termina com uma franja (de seda?) arrematando o final de toda parte superior. O entalhe na cabeceira da cama também é primoroso.
Por fim, curiosamente, há uma espécie de… Dois monstrengos (duas gárgulas?) entalhados nas laterais da cama que, se for isso mesmo, só pode ser para espantar os maus fluídos, o mau-olhado, outra crença enraizada nessa época.
Agora, intrigante mesmo, é esse chapéu do Sr. Arnolfini: não sei dizer de onde e por quê surgiu o modelo. Tampouco faço ideia dele não tê-lo retirado nesse momento solene. Talvez fosse por conta de ser mais um item fortemente indicativo de sua posição.
Segundo especialistas, essa obra permanece inigualável no quesito “pintura à óleo”. Mas para Michelangelo, “a escola flamenga tenta fazer bem tantas coisas que não faz nenhuma.” (algo assim).
Claro que cada um sente a obra de uma forma distinta, pessoal. Eu, por exemplo, ao contemplá-la não deixo de ver, em cada detalhe, um engodo. O testemunho de uma ilusão. E sou levada a pensar na doce e terna Giovanna. E em sua falta de opção.
Mil beijos a todos e, muito, muito grata pela participação, amigos!
lu.
E ainda leiam a observação de uma leitora do Consuelo blog:
Querida Luciene, sobre os tamancos, observei que os dela estão numa posição de “receber” o homem, ou seja juntos nos calacanhares e abertos nas pontas. Já os dele estão na posição contrária, juntos nas pontas, como uma cunha, uma posição de “introdução”. Macho e fêmea, portanto. Não sei se essa observação é válida, ou se isso foi intencional da parte do Van Eyck, mas me pareceu bem interessante. O que vc acha?
Beijos
Eliana
PS: Só para complementar, eis minha resposta à observação da leitora: “Que perspicácia, Eliana! \o/
Perfeita sua análise e conclusão, amiga!
Não digo que quem ensina é quem + aprende?
Mas é claro que nada, absolutamente nada nessa obra é aleatório: cada cor, cada posição, objeto e etc., tem um significado implícito. Assim é um mapa astral: quanto + você olha, + descobre coisas que não havia reparado.
Parabéns!!! E muitíssimo grata por sua preciosa colaboração: nos enriqueceu ainda mais.
Mil beijos,
lu.”