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Análise da Obra: “O Remorso de Orestes” de Willian Adolphe Bouguereau por Luciene Felix Lamy

Começando o ano com mais uma incrível análise completa de Luciene Felix Lamy.
Vale a pena ler com calma e olhando cada parte da obra para entender bem todos os detalhes e o contexto da história.
Boa leitura! Aguardo os comentários!!

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“O Remorso de Orestes” de Willian Adolphe Bouguereau

Análise da Obra: “O remorso de Orestes” de William­ Adolphe Bouguereau

IMAGEM: Bouguereau.Orestes

LEGENDA DA IMAGEM: O remorso de Orestes (1862), de William­Adolphe Bouguereau (1825­

1905). The Chrysler Museum of Art, Nortfolk, Virgínia.

Bouguereau foi um talentosíssimo pintor do belo, do sublime, da meiguice e da docilidade (basta dar um “Google Imagens” para constatar que você sempre adorou sua arte). Mas nas poucas obras em que ousou retratar a violência, também o fez com maestria.

Na cena acima, observamos um rapaz desesperado, tapando os ouvidos enquanto é perseguido por três mulheres furiosas. Todas elas fixam o olhar sobre ele e apontam­-lhe o dedo indicador chamando a atenção do jovem para outra figura feminina desfalecida, apunhalada no coração.

Vestindo um dramático manto vermelho sobre um vestido branco, é a rainha Clitemnestra que acaba de ser assassinada pelo próprio filho, Orestes. A consciência não o deixa em paz!

Ainda no retrato desse drama, constatamos o vigor de quatro corpos em movimento, em contraste com um outro corpo paralisado. Observem que as Erínias (também conhecidas como as três parcas, as moiras, as tecelãs, as Fúrias) possuem cabelos de serpentes. Desfiguradas, suas faces exprimem ódio, indignação e ameaça. Uma delas ostenta uma serpente bem grande como se fosse um chicote, enquanto a outra porta um archote.

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Eruditos, os artistas doutrora prezavam muito a cultura clássica e, como não podia deixar de ser, para compreender os meandros da psique humana, debruçavam­- se sobre os tragediógrafos gregos.

Bouguereau demonstra profunda familiaridade com a tragédia de Ésquilo, intitulada “Eumênides” (548 a.C.), pois o tema retratado nesse quadro é o ato mais aviltante que se pode cometer: o assassínio da própria mãe, o nefasto crime de matricídio.

Para que a fruição, a contemplação dessa obra magistral seja ainda mais completa, perscrutemos por que esse rapaz ousou matar a própria mãe e como a cena retrata a transição do matriarcado para o patriarcado.

A mando do deus Apolo (Sol), o rapaz foi “autorizado” a matar a mãe para vingar a morte do pai.Sim, a mãe de Orestes, Clitemnestra assassinou o marido, o lendário rei de Esparta, Agamêmnon, por ter sacrificado sua primogênita, Ifigênia para conseguir bons ventos e partir para a conquista de Troia.

Historicamente falando, tanto a arte literária quanto a pictórica revela a superação das leis mais antigas (matriarcado) pela nova lei (o patriarcado).

O crime será presidido por Athena que, durante o julgamento de Orestes, no Areópago de Ares(onde eram julgados os crimes de sangue), proferirá seu famoso “voto de Minerva” (nome romano de Athena), desempatando o veredicto do juri.

Para a religião arcaica (cerca de 1.200 a.C.), quem derrama sangue materno ofende e viola o direito inexorável da terra­mãe.

As Erínias, também conhecidas como “As Fúrias”, a vingança, nascidas do sangue que jorrou dos órgãos genitais de Urano (Ouranós, os Céus), ceifado por seu filho Chronos (o tempo, Saturno para os romanos), perseguiriam e não deixariam impune o mais aviltante crime contra a própria natureza. Para esta cultura só existe um laço sagrado: o de mãe e filho.

Retomando o desenrolar da machina fatalis: Agamêmnon sacrifica a filha Ifigênia, é assassinado pela mulher Clitemnestra e vingado pelo filho Orestes, por ordem expressa do deus Apolo.

Apavorado com as Erínias sob seu encalço, Orestes procura abrigo no templo da deusa da Justiça.
Abraçado aos pés da estátua de Palas Athena, suplica por um julgamento e, contando com a pronta defesa do deus da harmonia Apolo, anseia por acolher o veredicto que vier.

Uma mudança não se dá sem luta. Chega o inadiável momento em que se travará o definitivo embate entre: a) de um lado, as catatônicas forças das profundezas da terra, a natureza germinadora, das trevas subterrâneas do Hades, personificações antropomórficas (que o homem constrói imageticamente à sua semelhança) dessas potências (as Erínias representam o matriarcado) e; b) do outro, o dia claro da razão, a nova luz do Olimpo presidido agora por Zeus, o lógos que se impõe à instauração da política humana que se assenta em Diké, a lei da pólis (Apolo e Palas Athena, arautos da nova ordem que representam o patriarcado).

Todo processo de julgamento de Orestes procedem cerimoniosamente como o instituímos até hoje, mais de vinte e cinco séculos depois: apresenta­-se o réu e a denúncia, o advogado de defesa (Apolo) e as acusadoras (as Eríneas), o júri (doze atenienses) e a juíza (Palas Athena).

Quando Orestes indaga ao coro porque as Erínias não perseguiram sua mãe Clitemnestra ao matar seu pai, este afirma não ter sido cometido crime contra o sangue, ao que ele prontamente indaga: “e eu seria, por acaso, do sangue de minha mãe?” Indignadas, as Erínias perguntam: “Não foi ela, assassino, quem te alimentou em seu seio? Renegas o dulcíssimo sangue materno?”.

Para o matriarcado, o pai, seja ele quem for, apenas deposita a semente na mulher, como um lavrador anônimo que semeia a terra, verdadeira fonte de tudo o que brota
.

Já para o patriarcado, a mulher é, assim como a terra, apenas depositária da semente, sendo, portanto, o pai o grande responsável pelo que brota, enquanto a mãe, matriz fria e passiva, não
gera, apenas alimenta o germe nela semeado.

O argumento apresentado na defesa de Orestes por Apolo alude ao nascimento da juíza Palas Athena, ela mesma gestada nas meninges de Zeus e parida pela machadada certeira do ferreiro divino Hefestos(Vulcano para os romanos).

Iradas com Apolo, as Erínias vociferam e ameaçam: “Tu jovem deus, esmagas nossa velhice, mas aguardo a sentença e contenho até lá minha cólera contra a cidade”.

Enquanto os doze cidadãos atenienses depositam seus votos na urna, a deusa da Justiça esclarece: “Serei a última a pronunciar o voto. E os somarei aos favoráveis a Orestes. Nasci sem ter passado por ventre materno; meu ânimo sempre foi a favor dos homens, à exceção do casamento; apoio o pai. Logo, não tenho preocupação maior com uma esposa que matou o seu marido, o guardião do lar; para que Orestes vença, basta que os votos se dividam igualmente”.

Faz­-se silêncio. Diante da ansiedade de todos os presentes, uma pausa. A deusa dá seu veredicto “Este homem está absolvido do crime de matricídio porque o número de votos é igual dos dois
lados”. Há em jogo algo mais relevante neste tribunal in dubio pro reo, neste tribunal da justiça e não da vingança.

Com o “voto de Minerva” dá­-se o estabelecimento da supremacia da luz do lógos sobre as “Fúrias”, forças ctônicas da natureza. O pai, guardião do lar e não a mãe, tem a prioridade do direito que procede de Zeus, pai de ambos, Apolo e Palas Athena. Estes são os novos deuses, os do Olimpo, com suas novas leis.

Sobre o inconformismo das imortais Erínias, habitantes das entranhas da matéria, elas, filhas da noite, que originam toda espécie de vida “detentoras do nascer e do morrer, os dois pontos finais entre os quais, segundo Platão, move­sse a trajetória de todas as coisas”, vaticinam sérias ameaças à cidade de Atenas.

A sapientíssima juíza, gestada na cabeça (razão) de Zeus, graças à arte da retórica, conteve as “Fúrias”com incomensurável empenho.
Reconhecendo seus poderes, prometendo- ­lhes mansões e templos dignos, tem seu voto de desempate acolhido pelas Eríneas que passam a ser reverenciadas em Atenas e a ser chamadas “Eumênides”: as benevolentes (daí o título da obra). Quem mais senão a diplomática Palas Athena, com seus lúcidos e irrefutáveis argumentos para aplacá­las?

Por não vivermos mais numa sociedade exclusivamente agrária, governada e endeusadora da terra e da fertilidade, por termos agora que estabelecer novas leis conciliatórias sobre a violência que nasce da vingança dos crimes de sangue, do “sanguine coniunctae” que dizimava famílias inteiras na Hélade, o direito ao julgamento, a política da pólis se impõe: Vitória do Lógos!

Elementar que a contagem de votos tenha empatado: o filho é do pai tanto quanto também é da mãe. Superada a fúria cega das forças brutas, indiscriminadamente germinadoras, caberá à pólis, pela primazia da ratio, deter o caos e instaurar uma nova ordem. Poder germinador da terra, dom e graça das Mães. Mas, para que não haja desequilíbrio, constatamos que não é mais sábio (Palas Athena)nem harmonioso (Apolo) que o exerçam sozinhas, quando antes da pólis.

Do ventre das férteis Erínias de nosso solo ainda proliferam frágeis e desamparadas sementes de irresponsáveis(posto que ausentes)lavradores anônimos. São as crias da escuridão e da injustiça, distantes da justiça de Athena, da luz de Apolo.

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Análise da obra “Uma dança para a música do tempo”, de Nicolas Poussin por Luciene Felix Lamy

Queridos amigos, hoje temos mais uma obra com a análise gentilmente feita e cedida para o blog pela Luciene.
Está imperdível.
Aproveitem!!

Análise da obra “Uma dança para a música do tempo”, de Nicolas Poussin por Luciene Felix Lamy.

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Trazemos a delicadíssima tela do francês Nicolas Poussin (1594-1665), que fez carreira (e sucesso!) em Roma. Poussin nasceu no interior da França, era de origem humilde e não dispunha de recursos para pagar por bons mestres. A sorte é que seguiu para Roma e, foi patrocinado pelos Médicis e até por um Papa, alcançou sucesso e fama. Há obra dele até na Basílica de São Pedro.

“Uma dança para a música do tempo” traz as figuras alegóricas da Riqueza, do Prazer, do Trabalho e da Pobreza, além do deus Jano (esculpido numa pedra, sobre um pedestal e envolto numa guirlanda de flores), a carruagem de Apollo e seu cortejo, a criança e o velho, no canto inferior direito e a outra criança fazendo bolhas de sabão, no canto inferior esquerdo.

Bem, vamos a uma das atividades mais prazerosas do mundo: contemplar uma obra de arte e tentar “traduzir” o que o erudito artista está a nos dizer através de suas pinceladas. Olhinhos (e Alma) atentos?

Observem que o deus da saúde e da harmonia, Apollo (Hélios, na mitologia romana) está, lá do alto, dentro de um círculo dourado, o que representa a eternidade que é o nascer do Sol (Apollo). Ele é precedido por uma jovem (seguramente a deusa Aurora) que faz jorrar algo como pó de ouro (ou flores douradas) de suas mãos. E sua carruagem é seguida por algumas donzelas, a bailar, as Horas.

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A representação pictórica dessas quatro divindades alegóricas, diz muito sobre as instâncias que presidem.


O Prazer é a única que nos encara convidativa
e, reparem como seu olhar é alegre, feliz. Assim como a Riqueza, o Prazer está calçado (isso é MUITO importante!). Não há dúvida de que o fato do Prazer ser a alegoria mais distante da Pobreza, também tem algo a nos dizer.

Sobre a cabeça de todas essas alegorias está algo ligado ao que elas representam e, o Prazer traz uma guirlanda de flores. Ora, flores são belas, exalam aromas agradáveis e… Perecíveis, efêmeras. O prazer também abarca a luxúria, o ócio e talvez seja por isso mesmo que dá às mãos à Riqueza. Afinal, sem recursos, como gozar o melhor da vida?

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Atentem que o Trabalho está centralizado, entre o Prazer e a Riqueza. E ostenta a guirlanda de louros em sua cabeça. Realmente, o Trabalho é dignificado, faz jus à coroa de louros, símbolo da vitória. Note-se que o trabalho, assim como a Pobreza, está descalço. Como sempre, nada é em vão, ou seja, em tudo o artista está a nos relatar o que apreende.

O Trabalho dá as mãos à Pobreza e essa tenta dar às mãos à Riqueza, mas observe que elas (mãos da Pobreza e mãos da Riqueza) não chegam a se tocar. A Pobreza traz em sua cabeça um simples pano a prender seus cabelos, está descalça e se veste com modéstia.

Já a Riqueza, calça belíssimas sandálias douradas, está bem vestida e traz uma guirlanda de pérolas na cabeça. É apropriado que a Riqueza ostente alguma joia, não acham?

Também podemos ver que a Pobreza traz uma expressão facial de sofrimento, enquanto a Riqueza apresenta um perfil sereno; já o Trabalho parece focado noutra coisa (na Riqueza?) e, como já dissemos, o Prazer tem uma carinha de indisfarçável satisfação.

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E, como se trata de “Uma dança para a música do tempo”, a figura do velhinho sentado tocando um instrumento musical parece introduzir a velhice (ou a morte) como elemento à espreita. Não importa o que façamos, a velhice e/ou a morte, está lá, presidindo a harmonia (avento-a pela música) que essas quatro alegorias, quando bem orquestradas, presidem. E essas asas? Ah, o tempo voa, não?

Já a criancinha ao lado do velho, segurando uma ampulheta (que ainda tem muita areia para passar), indica que a dança começou há pouco e vai durar algum tempo. Não é curioso que uma inocente criança segure a frágil ampulheta. Ops! Podemos, heraclitianamente, “ler” algo também nisso: “O tempo é criança brincando, de criança o reinado.” (Frag. 52 , do filósofo pré-socrático, Heráclito de Éfesos, inspirador de Sócrates e Platão).


A outra criança, no canto inferior esquerdo,(no quadro original, abaixo ela está àdireita) fazendo bolhas de sabão, parece estar a indicar a efemeridade da vida, que passa tão rápido
. Muitos elementos nessa obra reiteram isso insistentemente. Fato que é que esta criança está a brincar. Talvez a vida seja mesmo uma brincadeira, que levamos a sério demais.

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Agora, sobre a presença do deus Jano (daí janeiro) nesse sólido pedestal, vale a pena elucubrar. O maior monumento a Jano se encontra no Museu do Vaticano. Ele é bifronte, ou seja, tem duas faces: jovem, indicando o futuro e outra velha, representando o passado. Mas, às vezes, como no do Vaticano, ambos possuem longas barbas.

Jano, do latim, Janus, é o deus pagão dos começos e dos fins (31 de dezembro e 1º de janeiro). Talvez sua presença nessa obra se justifique pelo fato dos antigos romanos considerarem que esse deus traz dinheiro. À Jano é creditada a invenção da moeda, que como ele também tem duas apresentações distintas: cara e coroa.

A guirlanda de flores ornamentando Jano sugere mais uma contraposição entre o eterno e o efêmero: flores murcham, mas Jano se reinicia a cada ano. Sua afinidade com Saturno (Chronos) talvez se deva ao fato de alguns relatos mitológicos afirmarem que ele deu guarida ao deus do Tempo, quando esse fora destronado por seu caçula, Júpiter (Zeus).

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O tom de pele das alegorias chama a atenção: Riqueza e Prazer tem a tez mais clara e são mais robustos, pois não ficavam expostas ao sol como o Trabalho e Pobreza e, parece que passam bem (mesa farta). Mas isso são valores da época; hoje em dia, talvez fossem retratadas como sendo magras e bronzeadas.

Um fato curioso é que, me parece que o Tempo mira a Riqueza. De todas as demais alegorias, é para a Riqueza que ele olha. É possível: seja material, seja espiritual (ou ambas, pois não são excludentes!), talvez seja isso mesmo o que o Tempo almeja: Riqueza.

Outra observação perspicaz é o corpo malhado, musculoso e forte do Tempo, em contraste com suas feições de idoso (a calva e a barba branca). O que poderíamos interpretar disso? Que o Tempo é “Velho” (Sábio) e também, paradoxalmente, sempre “Novo”, vigoroso, como os jovens?

Transmitir tudo isso através de um texto, é fácil, mas com pinceis e tintas… Viva os artistas!

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