Águas e Mágoas do Rio São Francisco

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Águas e Mágoas do Rio São Francisco

Está secando o velho Chico.
Está mirrando, está morrendo.
Já não quer saber de lanchas-ônibus
nem de chatas e seus empurradores.
Cansou-se de gaiolas e literatura encomiástica e mostra o leito pobre,
as pedras, as areias desoladas
onde nenhum minhocão
ou cachorrinha-d’água,
cativados a nacos de fumo forte,
restam para semente
de contos fabulosos e assustados.

Ei, velho Chico, deixas teus barqueiros
e barranqueiros na pior?
Recusas frete em Pirapora
e ir levando pro Norte as alegrias?
Negas teus surubins,
teus mitos e dourados,
teus postais alucinantes de crepúsculo
à gula dos turistas?
Ou é apenas seca de junho-julho
para descanso
e volta mais barrenta na explosão
da chuva gorda?

Já te estranham, meu Chico. Desta vez,
encolheste demais. O cemitério
de barcos encalhados se desdobra
na lama que deixaste. O fio d’água
(ou lágrimas?) escorre
entre carcaças novas: é brinquedo
de curumins, os únicos navios
que aceitas transportar com desenfado.
Mulheres quebram pedra
no pátio ressequido
que foi teu leito e esboça teu fantasma.

Não escutas, ó Chico, as rezas músicas
dos fiéis que em procissão
imploram chuva?
São amigos que te querem,
companheiros que carecem
de teu deslizar sem pressa
(tão suave que corrias, embora tão artioso
que muitas vezes tiravas
a terra de um lado e a punhas
mais adiante, de moleque).
É gente que vai murchando
em frente à lavoura morta
e ao esqueleto do gado,
por entre portos de lenha
e comercinhos decrépitos;
a dura gente sofrida
que carregas (carregavas)
no teu lombo de água turva
mas afinal água santa,
meu rio, amigo roteiro
de Pirapora a Juazeiro.
Responde, Chico, responde!

Não vem resposta de Chico,
e vai sumindo seu rastro
como rastro da viola
se esgarça no vão do vento.
E na secura da terra
e no barro que ele deixa
onde Martius viu seu reino,
na carranca dos remeiros
(memória de outras carrancas,
há muito peças de living),
nas tortas margens que o homem
não soube retificar
(não soube ou não quis? paciência),
de pontes sobre o vazio,
na negra ausência de verde,
no sacrifício das árvores
cortadas, carbonizadas,
no azul, que virou fumaça,
nas araras capturadas
que não mandam mais seus guinchos
à paisagem de seca
(onde o tapete de finas gramíneas,
dos viajantes antigos?),
no chão deserto, na fome
dos subnutridos nus,
não colho qualquer resposta,
nada fala, nada conta
das tristuras e renúncias,
dos desencantos, dos males,
das ofensas, das rapinas
que no giro de três séculos
fazem secar e morrer
a flor de água de um rio.

“Discurso de Primavera e Algumas Sombras” – 1978

Carlos Drummond de Andrade

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